REFORMA POLÍTICA : UMA PRIORIDADE NACIONAL?
No Brasil há um aparente consenso no discurso da maioria das lideranças partidárias, dos analistas políticos, editorialistas e colunistas da mídia nacional, de que dentre os males brasileiros, aquele que seria o mais relevante e urgente de ser enfrentado seria o da nossa “desorganização político-institucional”, responsável pela parca representatividade de nossos partidos e pelo baixo padrão das posturas e práticas adotadas por nossos políticos. No dizer de tais formadores de opinião, com uma ampla e profunda reformulação do sistema político nacional, minimizar-se-ia em muito o descrédito com que a política é vista pela população brasileira.
Não concordo, no essencial, com tal avaliação. Encarando esta questão numa perspectiva democrático-popular, creio ser o nosso sistema político-institucional muito mais benéfico do que maléfico para o nosso povo.
Em verdade, nosso sistema político-institucional – cujos preceitos fundamentais foram sendo instaurados progressivamente desde a Proclamação da República até a Constituinte de 1988 -, vem contribuindo decisivamente para que tenhamos uma democracia massiva, com enorme e crescente participação popular (adotamos os institutos do voto obrigatório, do voto do analfabeto, do plebiscito, do referendo, de projetos de iniciativa popular), com amplo e diversificado espectro partidário (o que é, certamente, mais democrático do que sistemas que, na prática, viabilizam a existência de apenas dois ou três partidos), com o povo votando a cada dois anos e reciclando permanentemente a representação política nacional, sendo aberto e flexível o suficiente para possibilitar a emergência de fenômenos únicos como são o crescimento de um partido como o PT e a eleição de um operário para a Presidência da República, expressão de um dinamismo e permeabilidade sistêmica de alto potencial mudancista. É um sistema vigoroso e transparente o bastante para viabilizar a cassação de um Presidente da República e de inúmeros parlamentares, prefeitos e governadores por corrupção e improbidade administrativa, o mesmo ocorrendo com próceres do Judiciário brasileiro, numa proporção provavelmente maior do que em outras democracias nas quais tais vícios vicejam em grande quantidade.
Este nosso sistema político, tão avançado do ponto de vista democrático, se assenta sobre 5 princípios basilares que definem o que nele é essencial, a saber : somos uma República Federativa, e não Unitária ; adotamos o regime Presidencialista de Governo, e não o Parlamentarismo ; temos um Parlamento bicameral, e não unicameral ; temos o voto universal obrigatório, e não o facultativo ; e adotamos o voto proporcional, e não o distrital.
Estas características fundamentais de nossa institucionalidade infundem certas qualidades à nossa vida política que devem ser sempre realçadas e valorizadas. A indução à ampla pluralidade partidária (decorrente do sistema de votação proporcional, posto que o voto distrital induz ao bipartidarismo), o exercício permanente da negociação política exaustiva (fruto do sistema Presidencialista com Parlamento bicameral numa Federação), o amplo protagonismo político-eleitoral de nosso povo (somos mais de 120 milhões de eleitores votantes , graças ao instituto do voto obrigatório), o fato de termos um Brasil unido (consequência de sermos uma Federação), são aspectos fulcrais de nossa dinâmica política, que mostraram-se compatíveis com um desenvolvimento sócio-econômico extraordinário nos últimos 70 anos , salvo alguns poucos períodos de relativa estagnação, o que desmente a tese de que teríamos uma estrutura político-institucional inibidora da boa governança.
As características e qualidades típicas do modelo político brasileiro contribuíram decisivamente não só para o fantástico avanço democrático vivido pelo Brasil nas últimas décadas (do que são notórias comprovações a solidez institucional e o respeito à legalidade democrática verificadas durante as sucessivas crises ético-políticas que temos vivenciado), como também serviram de importante anteparo para o nosso povo quando da instauração de infame Ditadura Militar em 1964. Afinal, certamente a crescente e impactante incorporação de grandes massas ao processo político-eleitoral ocorrido nos quase 20 anos de democracia do pós-1945 – processo suficientemente vigoroso para impregnar a consciência popular da importância do direito ao voto -, para a qual nossa formatação institucional muito colaborou, veio a ser uma grande responsável para que os golpistas brasileiros, de 1964 em diante, não tiranizassem o Brasil tanto quanto golpes similares o fizeram na Argentina, Chile, Uruguai, et caterva. Os “respiradouros” de índole democrática, bem ou mal, sobreviveram entre nós – um Parlamento castrado, porém quase sempre funcionando; eleições mantidas na maioria dos municípios, ainda que não para prefeitos das capitais nem para governadores; Poder Judiciário aviltado, mas funcionando -, não por generosidade dos nossos ditadores, mas pela necessidade de manter, como válvula de escape, uma certa ritualística democrática – mesmo sendo ela essencialmente formal -, devido à força do apelo popular que o ato de votar adquiriu junto ao povo trabalhador brasileiro. Assim, a flexibilidade, a permeabilidade, a natureza “negocial” de nossa institucionalidade, facilitaram em muito que nossa gradual transição democrática da Ditadura Militar ao atual Estado Democrático de Direito ocorresse sem que nossos brutais traumas atingissem proporções equivalentes aos de outros países latinoamericanos.
Quanto à problemática da carência de ética na atividade política, que poderia, no dizer de tantos, ser em muito superada por uma eventual Reforma Política, penso que tal crença decorre do que eu chamaria de “superestimação legisferante” da cultura nacional, ou seja, o cultivo da ilusão de que o estabelecimento de uma lei é capaz, por si só, de tornar realidade o disposto na norma legal, independentemente das condições objetivas sobre as quais a legislação venha a ser aplicada. Tal “ilusão legisferante” – herança cultural de nossa colonização ibérica - é que explica a freqüência com que no Brasil tantas leis “não pegam”. Imaginar-se que a mera aprovação de uma Reforma Política significará uma reversão profunda nos deletérios métodos usuais no fazer política em nosso país, ou é um sonho bem intencionado, ou é, para muitos, um pretexto simbolicamente relevante para justificar uma convocatória de fato focada em mudanças noutras temáticas que não a da ética na política.
É claro que não julgo ser indiferente termos uma legislação mais ou menos aperfeiçoada e rigorosa no tocante a exigências e penalidades atinentes à conduta de nossos agentes públicos. É claro também que temos distorções políticas e problemas a serem enfrentados e corrigidos. Disto são exemplos o grande troca-troca de partidos, o abuso do poder econômico, a excessivamente distorcida representação por Estado na Câmara Federal, as sistemáticas mudanças casuísticas das regras eleitorais que vigem em cada eleição, dentre outros. Cada uma destas questões, se cotejadas com os princípios constitucionais fundamentais já mencionados, são temáticas apenas relativamente importantes, mas que requerem aprimoramentos legislativos. Por isso, tais necessários aperfeiçoamentos temáticos devem ser viabilizados mediante legislação específica, votada em separado, deliberando-se caso a caso, cada assunto decidido a seu tempo; e assim sendo, evitar-se-ia que estas questões fossem inseridas numa discussão mais geral e num encaminhamento deliberativo global atinente a uma ampla Reforma Política posta como prioridade central da agenda nacional, reforma esta que criaria a possibilidade de ocorrerem reformatações da configuração política brasileira naquilo que ela tem de essencial e de alto valor democrático, como seria o caso de mudanças quanto ao voto obrigatório, ao voto não distrital e ao regime presidencialista (este último podendo ser solapado pela adoção do “orçamento impositivo”, o que seria uma manobra para, subrepticiamente, se parlamentarizar o nosso presidencialismo, golpeando-se fundamente a vontade nacional expressa de forma esmagadora em dois plebiscitos históricos). Ou seja, não devemos lidar simultaneamente com a criança saudável (novas normas éticas; melhorias tópicas na legislação partidária) e com a água suja (eventuais mudanças nos balizamentos políticos básicos). Daí eu ser contra a proposta petista de ser realizada uma Constituinte Exclusiva para se fazer uma Reforma Política no Brasil. Para o povo trabalhador brasileiro, muito mais urgente e relevante são as Reformas Tributária, Trabalhista, Previdenciária, Agrária e Ambiental, do que uma imponderável Reforma Política ampla.
Ademais, as questões da carência ética na vida pública e do descrédito na política são fenômenos mundialmente impactantes. São evidências disto, não só os sucessivos escândalos políticos ocorrentes em inúmeros países de todos os continentes (em geral, com maior grau de impunidade do que no Brasil), mas também o muito elevado absenteísmo eleitoral reinante na grande maioria das democracias consolidadas – com raras exceções, como a Austrália, onde o voto é obrigatório. De fato, há uma gravíssima crise de representação, não apenas nos partidos políticos e nos Poderes da República, mas nas entidades da Sociedade Civil – sindicatos, associações comunitárias e empresariais, clubes de serviços, imprensa, etc. -, crise esta que é parte de uma mais abrangente problemática, qual seja, a impactante e crescente “insolvência” dos valores tradicionais de instituições basilares das sociedades humanas, como a família e a religião. Em verdade, a valorização da Ética e da Política junto à Cidadania dar-se-á sobretudo pelo revigoramento, no conjunto da sociedade, de valores fundamentais – os da justiça, da democracia, da solidariedade, da equidade -, que venham a se desdobrar no âmbito dos poderes republicanos como reflexo da força com que tais valores sejam vivenciados pelos cidadãos em seu cotidiano. É impensável termos um ambiente político sadio, infenso ao oportunismo e à corrupção, se na sociedade civil prevalecem visões típicas da barbárie tecnizada – a lei do “cada um por si, o resto que se exploda”, a competitividade a qualquer custo, os fundamentalismos religiosos e étnicos, a ética mesquinha do pequeno suborno da pequena autoridade da repartição pública ou da esquina , as grandes falcatruas no mundo dos grandes negócios ou dos altos escalões da República. Outrossim, é evidente que, como salientamos acima, não cabe ficarmos apenas aguardando a evolução positiva do contexto ético-cultural geral da sociedade para que iniciativas legais corretoras sejam tomadas de modo que, dialeticamente, aperfeiçoamentos normativos na esfera política estimulem a revalorização dos princípios humanísticos que devemos fortalecer junto aos nossos concidadãos.
Godofredo Pinto – Prefeito (2002-2008) e Vice-Prefeito (2001-2002) de Niterói pelo PT; Presidente Regional do PT/RJ (1996-1997); Deputado Estadual (1983-1994); Fundador e membro da Comissão Nacional Provisória do PT (1980); Fundador (1977) e Presidente do Centro Estadual dos Professores (CEP) de
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